quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Capítulo 25


Já é fim de tarde quando escancaro a porta do meu quarto para Nauane entrar. Ela deixa as malas num canto e se joga na minha cama, retomando a conversa iniciada ainda na recepção da pousada.

— E então, vamos colocar o plano em prática? – ela incita e eu recuo.

— Nem pensar! Não vou melar esse noivado, isso é demais até para mim. – um tanto estressada, deixo-me cair ao seu lado. – Nanie, e se eu só estiver com ciúmes?

— Ah, no começo pensei mesmo se tratar disso.

— Quando sua opinião mudou? – indago, ansiosa.

— Você sempre mascarou o amor que sente por ele. Vira e mexe o cara entrava nas nossas conversas. E os seus relacionamentos sem futuro? Meu, você realmente não queria se envolver, já que seu coração sempre pertenceu e sempre será do Joseph.

Fito minha sábia amiga. Há um sorriso de entendimento brincando entre suas sardas fofas. Os cabelos castanhos estão espalhados sobre o lençol e ela me encara como se soubesse o que direi a seguir:

— Se ele se casar, serei a mulher mais infeliz desse mundo.

— Eu sei, por isso cheguei em boa hora. Ainda há tempo de ferrar com tudo.

                                                    ≈≈≈

Levo Nauane para um tour pela pousada. Ela esteve aqui por três vezes, mas algumas coisas mudaram desde sua última visita. Meus avós a adoram e Espírito também. Aliás, meu pai até saiu mais cedo do hospital para o jantar em homenagem a essa visita mais do que aguardada.

Relembramos momentos hilários da faculdade e da agência de propaganda. Nanie conta como chutei as bolas do Roger, durante aquela reunião importante para a empresa. Minha avó chora de tanto rir. Que bom que minhas histórias os divertem. Após o banquete, resolvemos sair à caça de uma balada. Estou usando um vestido azul curto e uma jaqueta jeans por cima. Nanie preferiu uma bermuda preta de alfaiataria e uma blusinha branca de gola rulê. E nos pés, sapatilhas mega confortáveis.

Não há nada de interessante nessa cidade hoje. Poucos bares estão abertos e o único que nos chama a atenção pode se mostrar uma péssima ideia. Após deliberarmos os prós e contras, desistimos. Quando já estamos virando as costas, eis que uma voz rouca e extremamente sexy chama o meu nome.

Guilherme.

— Finalmente deu as caras Demetria. – ele se aproxima e não há para onde fugir.

— E aí, Gui. – noto que ele e Nanie trocam olhares quentes e tenho que me conter para não rir.

Apresento minha melhor amiga no mundo e não é que o Guilherme está jogando o maior charme para cima dela? Galinha, sempre galinha.

— Sejam bem-vindas ao Boteco Nas Costas do Padre. – ele toma as mãos de Nanie, desferindo um beijo em ambas. Que malandro safado.

Nas Costas do Padre não era o nome oficial do bar. Mas Guilherme, como todo criativo inveterado, mudou a alcunha do boteco que se localiza atrás da igreja. O padre não deve ter ficado lá muito satisfeito.

— É um imenso prazer conhecê-lo. – minha amiga diz, com sua melhor voz sedutora. Ah meu Deus, devo me preocupar? Enfim, ela sabe onde está se metendo, já contei poucas e boas do Guilherme.

— E então, vamos entrar? – ele pergunta, sorrindo para Nanie.

— O bar está lotado, talvez um outro dia. – digo puxando-a pelo braço.

— Nada disso. O bar está cheio, mas estou com uma mesa bem em frente ao palco. Estamos só eu e um amigo. Será um prazer ter a companhia de tão belas mulheres.

Devo vomitar agora ou mais tarde? Guilherme é tão meloso que chega a me causar náuseas.

— Demetria? – ele me encara, aguardando uma resposta.

Meu olhar recai sobre Nauane e suas pupilas parecem pular dentro das órbitas. Sei que ela quer ficar e não tenho como negar isso. Contrariando todo o meu bom senso – já não tenho muito mesmo – decido — Ok, vamos ficar.
                                                 ≈≈≈

O boteco está atulhado de pessoas que aguardam a banda subir ao palco. É um lugar jeitoso, rústico e com um ar vintage que chama a minha atenção. Há uma imensa estante de madeira, com inúmeras garrafas de whisky, todas etiquetadas com o nome do dono da bebida. Esse bar sempre foi o point dos amantes de destilados e jogadores de poker.

Desviamos de garçons e pessoas falantes, chegando à mesa apontada por Guilherme. Quando miro as costas do amigo dele, a respiração falha de imediato. Meus pés enraizam no chão e me recuso a andar. Notando que estou prestes a correr para bem longe, Guilherme passa o braço sobre meus ombros, sussurrando a seguir:

— Ele não morde, fique tranquila.

— Gui, não posso ficar.

— Ah, você pode sim. – ele praticamente me arrasta até a mesa. Ainda tento me desvencilhar, mas então, Joseph gira a cabeça e nossos olhares se encontram em meio ao burburinho. Assim fica difícil recuar.

— Olhe quem eu achei perdida por aí. – Guilherme faz as honras, puxando duas cadeiras para sentarmos. – Essa aqui é a famosa Nauane, de quem o Espírito sempre fala. – ele a apresenta e não sei o que fazer ou dizer. Afinal, onde está a noiva dele?

Com ambas as mãos, Guilherme força meus ombros para baixo e eu me sento, contrariada. Parece que zilhões de alfinetes espetam a minha bunda e uma angústia sem precedentes cresce em meu peito.

— Boa noite Demi. – Joseph acena com a cabeça e parece tão ou mais alarmado do que eu.

— Oi Joe. – respondo num fio de voz.

— Chopp? – Guilherme chama o garçom.

— Parei de beber. – aviso e aqueles três me olham como se eu não fosse desse planeta. – Qual o espanto? – irrito-me.

— Suco de limão? – Guilherme oferece.

— Pode ser. – dou de ombros.

Nesse ponto, Nanie e Joseph engatam uma conversa e começo a temer com possíveis especulações sobre o meu passado. Ela me lança uma piscadela e relaxo, na certeza de que minha amiga não dirá nada além do necessário.

A banda sobe ao palco e a galera aplaude, ensandecida. Nos primeiros acordes, entendo o porquê do boteco estar lotado. O show de blues começa e giro a cadeira para a frente, ao lado de Guilherme. Apesar de estar louca para dar uma olhada de esguelha, finjo que Joe e Nanie não estão ali, na maior fofoca.

Mas sobre o quê esses dois tanto falam?

Noto uma movimentação às costas. Giro o pescoço e Joseph se levanta, com o celular à mão. Diz qualquer coisa e se dirige para a saída do bar. Encaro Nanie com as sobrancelhas bem erguidas, interrogativas.

— É do hospital. – ela revela.

— Hum. – levo os cotovelos à mesa, sustentando a cabeça entre as mãos. – Sobre o que estavam falando?

— O que acha? – ela me lança aquele sorriso enigmático que odeio.

— Não é óbvio? – Guilherme se mete.

— E quanto a você senhor Guilherme, o que pensa estar fazendo? – interpelo.

— Quer realmente saber? – apesar do som estar alto, escuto perfeitamente a sua voz. – Tenho esperanças que sua chegada destrua aquele casamento fadado a infelicidade. – engulo com dificuldades e ele continua: – Joseph não pode se casar com aquela mocreia, não suporto a ideia do meu amigo entrar nessa roubada. Só você pode salvá-lo de cometer um grave erro Demetria.

Nanie e eu nos entreolhamos pasmas. Tenho que repetir mentalmente o que acabo de ouvir. A expressão de Guilherme comprova a veracidade de seu desabafo.

— Olha Guilherme, não sei sua versão dos fatos, mas concordo plenamente com você. – Nanie joga a merda na mesa e levo as mãos à cabeça prevendo a união desses dois contra o casamento de Joseph e sua megera.

— Parem. – peço, suplicante. – Vocês não sabem o que estão dizendo.

— Ele não ama a Samantha. – Guilherme coloca sua mão sobre a minha. – Ele nunca amou outra mulher.

— Ele disse isso à você? – estou prestes a surtar.

— Nem precisa. Eu sei. – Guilherme respira e me encara nos olhos. – Quando você foi embora, ficamos brigados por algum tempo. A Samantha se aproveitou do momento de fragilidade e deu o bote.

— Espírito me disse que ela não é tão ruim assim. Até o incentivou a estudar fora do país, mesmo sabendo que poderia perdê-lo. – sério mesmo que estou defendendo aquela tosca?

— Como você é inocente Demi. – ele ri na minha cara. – A mimadinha só fez isso por acreditar que se ele ficasse no Brasil, poderia ter uma recaída e correr atrás de você. – Guilherme aperta a minha mão. – Ainda acha que ela agiu de boa fé?

Ah, agora está tudo muito claro. Achava mesmo que faltava uma peça nesse quebra-cabeças do capeta.

— Biscate. – murmuro, entredentes.

Joseph volta para a mesa e o assunto morre. Desculpando-se por precisar sair às pressas, mas havia
 uma emergência no hospital. Despede-se de Nanie com um beijo na bochecha, de Guilherme com um aperto de mão firme e da sem noção aqui, apenas um meneio de cabeça.

Oh, mundo cruel!

Quando Joseph nos deixa a sós, esses dois bem que tentam voltar ao assunto “Melando o casamento”, mas corto o papo pela raíz. Se for como Guilherme contou, não serei eu a dar um ponto final nisso. Mas tenho que dar o braço a torcer, eu adoraria ver aquela arrogante se ferrar.



Feliz ano novo!

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Capítulo 24


— Por que me traiu naquela noite, Demetria?

A pergunta me fuzila e as pernas bambeiam. Paro de andar e estou cabisbaixa, sentindo-me um lixo. Em algum momento essa pergunta viria à tona, mas não me sinto preparada para essa conversa. Ainda assim, forço-me a responder quando Joseph ergue meu queixo, indagativo.

— Eu estava bêbada.

— Isso não é desculpa.

— É claro que não. – concordo, inspirando o ar profundamente.

— Sempre tive certeza dos seus sentimentos por mim. Sei que quando sua mãe foi embora, você surtou achando que não merecia nada de bom. E eu tenho consciência de que sempre fui sincero com você. – ele faz uma pausa e seus olhos se aprofundam. – O que houve naquela noite Demi?

— Eu fiquei com medo tá legal? – lágrimas irrompem, sem aviso. – Eu temia que você pudesse me deixar também.

— E por isso você me traiu? Para me afastar e fugir de uma possibilidade inexistente? – ele parece confuso com minha confissão. – Demetria, sei que é maluca, mas isso é demais.

— Nem os psiquiatras me entendem. – resmungo. – Naquele momento eu achei que era o certo a fazer. Estava tentando evitar um sofrimento futuro… caramba, eu não aguentaria se me abandonasse Joe.

— Eu não acredito nisso, não pode estar falando sério. Por que achou que eu a deixaria? – ele sacode os cachos, indignado. – Demetria eu amo você. – e então, perplexo com a própria revelação ele remenda: – Eu… eu… eu amava você.

Não me importo que ele tenha consertado a declaração. Suas palavras ressoam por todas as minhas células que, em júbilo, explodem em sensações e sentimentos avassaladores. Joseph é o homem perfeito. É o cara que descrevi naquele papel amarelado e amassado. E tenho vontade de me matar por ter perdido a chance de ser feliz. Será que está tudo perdido mesmo? Quer saber, não vou ficar com essa dúvida. Num ímpeto desenfreado, me atiro sobre ele, numa sede intermitente. Meus braços envolvem seu pescoço quando nossos lábios se tocam, vorazes, incontroláveis. Ele me puxa para mais perto e suas mãos grandes me prendem num abraço sufocante. Tombo a cabeça de lado e o gosto da sua boca é incrivelmente entorpecente, tanto que já estou viciada.
Meus dedos se agarram aos seus cabelos volumosos, numa ânsia irrefreável. Ele se inclina sobre mim e ergo uma das pernas, enlaçando seu quadril. Ah, agora a coisa pega fogo. Mas que droga, eu sempre estou errada. Joseph, como que tomado por um alerta de perigo extremo, me afasta nervosamente. Está ofegante e com cara de quem cometeu um grande erro. Ele não me encara nos olhos e me sinto uma biscate, da pior categoria.

O cara está noivo, merda!

— Demetria, eu…

— Desculpe, a culpa foi minha. – seguro as lágrimas, doida para enfiar a cabeça num buraco e não sair de lá antes dos oitenta anos.

— Eu preciso ir. – ele parece perdido, não sabe nem que direção tomar.

Joseph finalmente se localiza e sai andando, sem se despedir ou olhar para trás. Estou travada no lugar, apenas observando enquanto ele se afasta, a passos apressados.

Bem que aquele garoto poderia voltar com sua gangue, armados até os dentes. Eu abriria os braços e me deixaria ser metralhada. Os moleques não teriam noção do tremendo mal que estariam extirpando desse planeta. Tenho certeza de que Deus seria benevolente e abriria as portas do Paraíso para eles.

                                        ≈≈≈

Não consigo dormir.

Depois que desabafei com a Nanie, pelo computador, chorei por horas a fio, até as lágrimas secarem. Não estou me sentindo melhor, muito pelo contrário. Sei que a Samantha não merece o meu arrependimento, mas ainda assim, meu remorso é inevitável. Levo o antebraço à testa e acabo de sorrir timidamente, com os lábios retesados. Rememoro uma das cenas mais cômicas que vivenciei ao lado de Joseph. Foi na nossa primeira noite…

Estávamos acampando com dois casais de amigos. As três pequenas barracas já estavam armadas na praia quando a tempestade despencou dos céus. Corremos para nos proteger das gotas pesadas e gélidas, bem como dos raios apavorantes que riscavam a escuridão. A fogueira se apagou por completo quando fechei o zíper da barraca para duas pessoas. Hesitei quando me vi sozinha com Joseph. Eu tinha dezessete e ele dezoito anos. Sabia que não tinha escapatória e tenho que confessar que eu estava um tanto aflita. Ele acendeu a lamparina e pedi que apagasse. Joe não discutiu e ficamos na penumbra. Eu arfava com as possibilidades e senti calafrios quando suas mãos quentes alcançaram meus ombros.
Eu jurei não cair na gargalhada e me contive. Comecei a tatear e encontrei seu rosto. Meus dedos deslizaram por seu pescoço, ombros, braços, tórax e então, me detive em sua camiseta. Fui enrolando o tecido, puxando para cima. Ele colaborou e nos livramos da primeira peça de roupa. Seus lábios se colaram em meu pescoço, enquanto ele arrancava minha saída de banho. Fiquei apenas de biquíni e estremeci quando seus dedos acariciaram minhas costas.
Estava escuro e não via praticamente nada além daquele vulto que se levantou e arrancou a bermuda. Ah, Deus, minha primeira vez realmente iria acontecer. Um pânico se instalou na minha garganta, mas não recuei e nem pedi que parasse quando deitou-se ao meu lado, puxando-me para mais perto. Alisei seu peito franzino e permaneci por tempo indeterminado naqueles pelos que sabia serem dourados. Suas mãos, que antes estavam em minha cintura, agora subiam perigosamente. Ele me beijou com vontade e acariciou meus seios, agora ligadões em seus movimentos circulares.

Enlouqueci.

Subi por cima dele e os beijos ficaram mais profundos, úmidos e estonteantes. As mãos de Joe se firmaram em meus glúteos rígidos de tensão e porque não dizer, de tesão.
Despi-me de qualquer medo com relação ao que estava a ponto de acontecer. Sentia sua pulsação se acelerando, juntamente com a minha. E então, minha mão direita resolveu passear por aquela pele macia, deliciosamente em brasa.
Enfiei-me para dentro de sua sunga e qual não foi minha surpresa ao me deparar com aquela ereção imensa, causticante. Aí foi demais. Levantei-me no susto. Antes que Joe se desse conta, abri o zíper da barraca e saí feito uma louca debaixo da tempestade. Corria como se assim pudesse salvar a minha vida.

Quando relembro da cena, começo a rir sozinha, incrédula com tamanha inocência. Já tínhamos tido alguns momentos de intimidade, mas eu nunca me deixei chegar tão longe. Voltando ao patético cenário, eu corri muito. Caí duas ou três vezes no trajeto, mas eu não voltaria para aquela barraca nem arrastada! Eu queria sim fazer amor com o Joseph, mas a que preço? Aquilo que ele sustentava entre as pernas era, no mínimo, desumano.
Ficou óbvio que seria doloroso e não prazeroso. Como eu não havia percebido o tamanho daquilo antes? Continuei fugindo, sem olhar para trás. Mas então, senti mãos se fechando em minha cintura. A queda foi inevitável e caí com a cara na areia. Lembro que me debati, pedindo que Joseph esquecesse do assunto e me deixasse sozinha.

— Demetria, eu nunca a machucaria. – ele disse acima da chuva, mas não relaxei. – Precisa confiar em mim.

— Não dá Joe. – afastei-me e apontei para aquela coisa que saia pela sunga. – Você vai me matar com isso aí.

Ah, que estúpida!

Mas enfim, continuemos a narrativa:

— Eu resisti até hoje e não me importo de esperar o tempo que for preciso. – ele me lançou aquele olhar cheio de sentimentos e significados. – Não acontecerá nada que você não queira.

Uma sensação de segurança se apossou da minha insanidade desmedida. Eu precisava mesmo ter fugido daquela maneira? O amor que ele sentia por mim era escancarado, por que então esse pavor em elevar nossa relação a outro patamar?

Senti-me envergonhada.

Sentada sobre a areia molhada, puxei Joseph para um abraço, com o intuito de me esconder daqueles olhos questionadores. Um estranho frenesi tomou conta do meu corpo quando seus braços se fecharam ao meu redor, protetores. Fantasias, das mais loucas, começaram a me cutucar. Imagens do seu corpo sobre o meu, na areia da praia, debaixo dessa chuva toda… ah, isso seria incrível.

— Eu quero aqui e agora. – comuniquei, resoluta.

— Não precisa ser hoje.

— Mas eu quero.

— Acabou o clima, Demi.

— Você já disse isso antes e eu provei que estava errado. – meus lábios encheram seu rosto de beijos, escorregando até sua boca molhada. Não demorou muito e estávamos os dois rolando na areia, pilhados.

A partir daí não fiz nenhuma besteira. Deixei-me guiar pela intuição e pelas vontades do meu corpo. Eu clamava por ele, num desejo que me arrebatou.

E caramba, foi bom demais!

Estava tudo perfeito: a chuva, a praia, aquele fogo interno, as palmeiras que balançavam com o vento, nossos corpos unidos numa dança instintiva, selvagem, transcendental. Naquele dia, eu me deixei amar loucamente, afastando o medo insano, aquela voz vinda diretamente do meu ego que, vez ou outra, queria detonar com tudo. Debaixo daquela tempestade, eu o amei mais do que a mim mesma.



domingo, 27 de dezembro de 2015

Capítulo 23 BÔNUS


Acabo de receber alta e não vejo Joseph em lugar algum. Caminho lentamente pelos corredores do hospital amparada por meus avós. Meu velho segue logo atrás, acalmando minha mãe do outro lado da linha. Trocamos algumas palavras e o sermão foi inevitável. Quem ela pensa que é para esse tipo de repreensão? O caso foi que escutei seu discurso de mãe zelosa, caladinha. Não estava a fim de brigar, estou sem energia até para respirar. As portas se abrem e saímos para o clima pós-chuva. Há um aroma delicioso no ar e o sol desponta através de grossas nuvens. Chegando no estacionamento, levo um tremendo susto.

Joseph está cabisbaixo e Samantha gesticula nervosamente. Pela cena fica claro que estão tendo uma briga daquelas. Mas como a mimada faz o tipo bem educada, não eleva o tom de voz e portanto, não consigo escutar o que diz, entre caras e bocas de dar medo.

Ela me vê e imediatamente se atira nos braços de Joe, desferindo-lhe um beijo que rouba o pouco de ar que tenho. Meu peito arde, infeliz. Vovó é a única que percebe o que está havendo e toca meu ombro como se sentisse a minha dor. Lanço-lhe um sorriso angustiado em resposta. Ela balança a cabeça, como quem entende. E então abre a porta do carro e eu entro, sem olhar para trás.

                                                  ≈≈≈

Dias se passaram e Nauane chegará amanhã. Ai, nem acredito! Estou precisando desabafar cara a cara e esse Skype me irrita profundamente. Não vi Joseph desde aquela cena no estacionamento. Após muito me questionar, acredito que ocasionei aquela briga sou a responsável pelo abalo sísmico. Mas estamos falando da Samantha, então, que se dane.

Caminho a esmo pelas ruas estreitas do Centro Histórico. Vejo uma rasteira linda, leve e solta na vitrine de uma loja. Aproximo-me babando. Eu preciso experimentar essa preciosidade necessita que eu a compre, agora.

— Você deveria ter morrido naquela manhã. – ouço uma voz macabra às minhas costas. Não me viro. Através do reflexo da vitrine vejo de quem se trata.

— Ficaria em paz se isso acontecesse? – pergunto, estreitando os olhos perigosamente. Ela que não se atreva a dar mais um passo na minha direção.

— Sei o que está tentando fazer Demetria. Mas não pense que Joseph cairá no seu jogo.

— Não jogo pelas costas Samantha. – atiro entredentes.

E então ela finca as unhas no meu braço e giro nos calcanhares numa fúria crescente. Tento manter o controle, não quero me arrepender mais tarde. Mas bem que essa baranga merecia uns bons socos!

— Fique longe do Joseph. Aquele homem é meu, está me entendendo? Se eu souber que você cruzou o caminho dele novamente, eu…

— Você o quê? – estufo o peito e encaro a mimada.

— Não queira descobrir. – dito isso, ela me dá as costas e de forma sobrenatural, caminha sobre saltos impossíveis no calçamento pé-de-moleque.
                                              ≈≈≈

Nem a rasteira dourada, novinha e brilhante, curou o meu ódio. Caminho em círculos pela cozinha da pousada, deixando Espírito maluco. Eu deveria ter furado os olhos dela, dado um soco naquela mandíbula pronunciada ou talvez, quebrado novamente aquele nariz empinado e bem feitinho.

— De certa forma, ela tem razão Demi.

— Oi????????????

— Você tem cruzado com o Joseph nas situações mais escabrosas possíveis. Quem vê de fora diz com toda a certeza que você está perseguindo o cara. – Espírito argumenta e eu explodo:

— Mas eu não estou perseguindo ninguém!

— Eu sei disso, mas se coloque no lugar da Samantha. – ele pondera.

— Nem ferrando! – cruzo os braços e me deixo cair sobre uma cadeira.

Espírito volta para as panelas, checando o ponto do molho pesto. Deixa uma gota cair na palma de sua mão e experimenta. Continuo ali, parada, com um tremendo bico.

— Eles são felizes? – pergunto, com medo de ouvir a resposta.

— Ela é apaixonada pelo Joe desde criança, você sabe disso.

— Não foi o que perguntei. – retruco.

— Olhe, eu não posso afirmar nada. – ele suspira. – Mas sem a Samantha, o Joseph teria caído numa espiral descendente. Ela foi como um porto seguro, aliás, foi bem mais do que isso. Sua arqui-inimiga o incentivou a viajar para Londres e estudar.

— Com o risco de perdê-lo para uma inglesa? – pergunto, incrédula.

— Viu? Ela não é tão ruim assim. – Espírito me lança uma piscadela e volta sua atenção para as panelas.
                                             ≈≈≈

O restante do meu dia foi uma merda. Caí de uma escada de alumínio de três degraus, escorreguei no piso molhado e dei com a bunda no chão, a bateria do Lúcifer morreu de vez, queimei a língua com o chá, engasguei com catchup e para fechar com chave de ouro acabo de tomar um choque no chuveiro.

Vá ter má sorte assim lá no inferno!

O clima está ameno e nada de chuva. Desisto do banho e enfio uma bermuda ciclista, um top branco e uma camiseta regata por cima. Calço o par de tênis e oro para que não tropece em meus próprios pés na corrida noturna. Saio pelo estacionamento e sigo por uma rua lateral. Ando por ruas esburacadas pela ação da chuva e atravesso a pequena ponte um tanto apreensiva. Com a baita sorte de hoje, é bem capaz do negócio desabar sob meu peso. Respiro aliviada quando chego do outro lado. O que se descortina a minha frente é uma rua larga, plana, perfeita para correr até cair morta.

Alongo os braços e pernas, o suficiente para não sofrer um estiramento. Inicio uma caminhada rápida e alguns metros mais tarde, começo a correr. Meus cabelos se agitam para trás e o coração trabalha apressado. Gotículas de suor se formam em minha testa, caindo sobre os olhos. Aumento a velocidade, trincando os dentes. Estou com muita raiva e não sei bem o porquê.

Checo o relógio de pulso e pelos cálculos, corri por três quilômetros e não aguento mais. Ofegante, diminuo o passo, contando os batimentos cardíacos. Apesar do afogamento, ainda tenho fôlego.

Uma voz masculina e juvenil surge às minhas costas.

— Bacana esse tênis aí.

Caraca, só me faltava mais essa para o dia ser perfeito. Verifico ao redor e os poucos transeuntes não percebem – ou não estão a fim de perceber – a situação crítica na qual me encontro.

— Pois é. E bem confortável também. – giro para encarar o moleque.

— Passa pra cá. – ele gesticula com uma das mãos.

— Está me zoando não é? – recuo um passo. – Se soubesse a merda de dia que tive, não pediria algo assim.

— Ah qual é. – ele joga as mãos para o ar, no maior jeito de malandro. – Você tem cara de ser endinheirada, amanhã comprará um novinho. Passa logo esse tênis aí e fica tudo certo.

— Já ouviu falar em trabalho? – questiono.

— Estou perdendo a minha paciência é sério, você não quer que isso aconteça. – ele tira do bolso da bermuda um canivete suíço. Agora sim o garoto conseguiu o meu respeito e atenção.

— Não acredito nisso. – cerro os punhos e já estou a ponto de me abaixar e tirar o par de tênis.

Mas então, alguém surge às minhas costas.

— Dê o fora. – nem preciso olhar para saber de quem se trata.

— Não sem antes pegar o que é meu. – o moleque sustenta o canivete em frente ao corpo, numa atitude agressiva.

— Nesse caso... – Joseph dá alguns passos a frente e desarma o garoto com uma facilidade surpreendente. O bandidinho caí ao chão e se arrasta para longe dele. – Suma daqui. – ele brada e eu acho isso tão romântico!

O moleque se levanta, cambaleante. Dispara a correr para bem longe de nós. Estou petrificada e boquiaberta, buscando entender o que acaba de acontecer. Joseph gira para me fitar, jogando o canivete para cima, como se fosse uma bolinha de tênis.

— Como fez aquilo? – indago, chocada.

— Aikidô. – ele sorri lateralmente.

— Eu não sabia que lutava. – comento, absorta naquele canivete que sobe e desce, sobe e desce.

— Eu tinha que descarregar a raiva em algum lugar. – a revelação me pega de surpresa.

— Ah. – e então, reassumo o controle da minha mente e atiro: – Olhe, é melhor parar de me salvar ou é bem capaz da sua noiva mandar me matar.

— O que disse? – ele fecha os dedos em torno da arma branca.

— Não é nada. – apresso-me em consertar o estrago da minha colocação. – O que está fazendo aqui afinal?

— Eu corro por aqui sempre que tenho tempo. – ele revela. – Mas não fuja do assunto Demetria. Por acaso a Samantha foi procurá-la?

— Talvez. – cruzo os braços, na defensiva. – Escute, esse garoto pode voltar com a gangue, não é melhor saírmos daqui?

Ele leva as mãos aos bolsos da bermuda, guardando o canivete. Concorda com a cabeça e retomamos o caminho que nos levará ao Centro Histórico. Apesar de suado, Joseph emana um delicioso aroma de orvalho e por um instante, eu adoraria me enfiar em seu pescoço para inspirá-lo até gastar.

— O que ela disse à você? – ele cutuca.

— Nada demais. A mimada foi até educada. – ironizo. – Olhe, sei o que parece, mas não estou perseguindo você, acredita em mim?

— Sei que não estou sendo perseguido Demetria. – seu tom é irritadiço. – Samantha não tinha o direito…

Não deixo que ele finalize.

— Eu teria feito a mesma coisa Joe. Relaxe.

— Teria? – ele parece surpreso.

— Ah sim. – um silêncio agradável paira sobre nós. Ouço apenas o pio das corujas e o barulho das solas sobre a terra batida. Quando estou à vontade, lanço a pergunta: – Paraty é uma cidade pequena, mas estamos nos cruzando demais, não acha?

— Já se perguntou o por quê disso? – sinto seu olhar sobre mim e evito encará-lo.

— Acha que existe um porquê?

Joseph não responde. O silêncio agora é desconfortável, inquietante. Uma tensão se instala na boca do meu estômago e torço para que cheguemos logo à ponte.

sábado, 26 de dezembro de 2015

Capítulo 22


— Alô? – minha voz ecoa pelas sombras. – Alguém está aí? Aí? Aí? Aí?

— Demetria? – nesse momento, as sombras se dissipam e me vejo num lugar confuso, onde as leis da física não se aplicam. – Demetria, é você?

Reconheço a voz e a pessoa vestida de branco, sentada na posição de lótus, flutuando sobre uma nuvem cheia de imagens desconexas.

— Mãe? – ok, estou em choque.

— Demetria! O que está fazendo no Astral, minha filha?

— Como assim? – indago unindo as sobrancelhas numa gigante interrogação.

— Onde você estava antes de chegar aqui? – ela questiona, visivelmente abalada.

Preciso pensar sobre isso. Onde eu estava mesmo?

— Acho que estava surfando. – afirmo, sem muita convicção.

— Como disse? – ela se mostra perturbada. – Ah, minha nossa! Você deve estar se afogando!

— O quê? Não, não é possível. – uma pausa tensa. – Você está querendo dizer que estou morta?

— Ainda não. – ela vasculha ao redor. – Onde está seu mentor espiritual?

— Quem? – meu tom de estranheza se eleva alguns decibéis.

— Droga! Do jeito que conheço você, ele deve estar tirando um cochilo. – ela parece transtornada. – Demetria volte já para o seu corpo!

— E como faço isso?

— Escorregue para a Terra, agora! – ela ordena, como se fosse algo simples, tipo estalar os dedos.

— Me mostre o escorregador que eu vou. – olho em volta. – Aliás, nem estou a fim de ficar por aqui mesmo. Baita lugar esquisito esse Astral. – resmungo.

— Estava surfando sozinha? – ela se aproxima e toca meus ombros, chacoalhando-me. – Quem estava com você, Demetria?

— Eu não sei. – meus pensamentos estão bagunçados, nebulosos. – Acho que o Joseph estava lá.

— Graças a Deus! – ela une as mãos em agradecimento. – Espero que ele seja rápido.

— Mãe, estamos mesmo conversando ou tudo isso é fruto da minha imaginação fértil? – indago, temerosa com a resposta.

— Vou dar duas horas para você se recuperar. E então ligarei no seu celular.

Nesse ponto, a imagem da minha mãe começa a se distanciar, distanciar, distanciar… saio daquele mundo esquisito e começo a cair. Caindo, caindo, caindo. E então, baque!

Ouço gritos.

Massagem cardíaca.

Lábios contra os meus.

O uivo feroz do vento.

O barulho das ondas quebrando.

Gotas gélidas de água caindo sobre a pele.

— Anda, Demetria, reage! – reconheço a voz de Joe.

Sinto suas mãos pressionando meu peito, uma, duas, três vezes. Seus lábios se colam nos meus e seu ar invade meus pulmões. Nesse ponto, meu corpo estremece e inicia uma batalha pela sobrevivência. Ergo o tronco subitamente e um jato d’água sai pela minha boca sem controle. Perco o ar. Começo a tossir desenfreadamente. Noto que não estamos sozinhos, um bando de surfistas se amontoa ao nosso redor. O oxigênio entra aos poucos e sinto os pulmões queimarem a cada inspiração. Cuspo mais água salgada. Estou asfixiando o ar não é suficiente. Sem parar para pensar, Joseph me pega nos braços e começa a correr pela praia num desespero que me assombra. 


                                                ≈≈≈

É óbvio que eu não iria morrer nessa altura do campeonato. Vaso ruim não quebra, como costuma dizer o meu avô. Mas nunca passei por algo assim a tênue linha entre a vida e a morte quase se quebrou. Quase. Lembro-me de parte do trajeto até Paraty.

Alguém assumiu o volante do carro de Joseph e minha cabeça se aconchegou em seu colo. Como todo bom médico, ele carrega no porta-malas uma infinidade de apetrechos, inclusive um balão de ar portátil, desses que precisam ser bombeados manualmente. E foi isso que ele colocou sobre meu rosto.

Lembro que perguntei sobre a minha prancha. Notei que Joseph se segurou para não me xingar. Com toda a paciência do mundo, ele desviou o olhar e disse:

— Quebrou-se ao meio. – houve uma pausa para respirar. – O que me causa alívio, já que você não fará outra idiotice tão cedo.

Não me lembro de mais nada, acho que apaguei.
                                                ≈≈≈

Estou medicada e já não preciso mais do balão de oxigênio. Abro os olhos e tento sorrir quando vejo meu pai e meus avós ao lado da cama na emergência do hospital. Aturdida descubro que minha mãe realmente ligou no celular após duas horas exatas do nosso encontro extracorporal.

Sinistro.

Nem sinal do Joe. Procuro com os olhos, mas realmente ele não está ali. E por que estaria?

— Não vou brigar com você Demetria. – meu pai toca meus cabelos alisando-os para trás. Seu tom é gentil e me acalma. – Aliás, quero pedir perdão por minhas últimas atitudes. – seus olhos estão marejados e a culpa me assola. – Eu não suportaria perder você.

— Pai, me desculpe. – minha garganta arde e a voz está rouca.

— Me perdoe filha. – ele se inclina e beija minha testa.

Minha avó chora, copiosamente. Segura firme a minha mão, como se assim pudesse evitar que eu volte a cometer outra imprudência. Já meu avô, suspira profundamente massageando meus pés.
Nesse segundo, a verdade cai sobre mim como um meteoro mortal. Sempre estivesse cercada de amor, mas buscava o que não estava ao meu alcance. A separação dos meus pais e a fuga da minha mãe mexeram comigo em níveis profundos deturpando por completo minha visão da vida.Caramba, está tudo tão claro agora.

— Terei que ficar aqui? – pergunto com a voz entrecortada.

— Ficará em observação até amanhã. – meu velho elucida. – E não se preocupe com o seu carro, já mandei buscá-lo.

— Obrigada pai. – minhas pálpebras pesam e eu adormeço.
                                         ≈≈≈

Acordo e pareço estar chapada. Há fios e canos por todos os lados. Estou ligada num monitor cardíaco e o barulho da máquina é infernal. Demoro um pouco para enxergar algo além de vultos e sombras. Quando giro o pescoço dou de cara com Joseph. Sentado numa cadeira desconfortável, percebo que velava o meu sono. Não demora muito e está de pé verificando meu pulso, as pupilas e os medicamentos que caem em gotas. Nunca vi um médico passar a noite ao lado de seu paciente, mas enfim… — Durma um pouco mais, ainda é madrugada. – ele aconselha.

— Você me tirou da água não foi? – tento rememorar os últimos acontecimentos.

— Foi por um triz, Demi. – ele revela e franze os lábios. – Se eu tivesse demorado um pouco mais… – a frase se finda antes da conclusão do pensamento.

— Fui presunçosa, me desculpe. Eu deveria ter escutado você.

— Pense antes de tomar decisões como as de hoje. Não brinque com a sua vida e das pessoas que a amam dessa forma irresponsável. – ele umedece aqueles lábios fartos e me lança um olhar triste.

Nesse instante, uma enfermeira chega sem aviso e sussurra algo no ouvido de Joseph. Ele meneia a cabeça e diz que já está a caminho.

— O que houve? – questiono.

— Alguém enfiou uma Barbie onde não deveria. – há um sorriso incrédulo em seu rosto. – Isso é o que dá pegar plantão.

— Uma Barbie? – seguro o riso. – Ok, boa sorte com o parto.




sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Feliz Natal!



Que esse natal seja para vocês com muito amor,muita alegria.Só quero agradecer por vocês mesmo que seja virtualmente minhas amigas e que gostem das histórias que eu posto,beijos.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Capítulo 21 ( FINAL MARATONA)


As cordas acabam de ser atreladas ao Píer. Joseph está num sono profundo quando faço menção em acordá-lo. Minhas mãos se detém no ar, duvidosas. Ajoelho-me ao seu lado, decorando cada linha do seu rosto, doida para sentir aquela barba por fazer em contato com a minha pele. Seus cabelos dourados e encaracolados são tão macios que pedem para serem tocados. Novamente detenho minhas mãos teimosas. Aqueles lábios parecem pulsar, chamando-me. Quando percebo, estou próxima demais. Tanto é verdade que estou respirando a inspiração dele.

Joseph se remexe e eu recuo, caindo de bunda no chão da embarcação. Ele desperta no susto. Seus olhos esverdeados se atiram para dentro dos meus azulados, como se fosse uma âncora. Sinto me queimar.

— Chegamos? – ele limpa a garganta e lança a pergunta.

— Acabamos de aportar.

Deus, ele é absolutamente lindo quando está dopado de sono. Espreguiça-se demoradamente e acho que chego a babar. Joseph se levanta e me estende a mão já que ainda estou com a bunda bem colada ao chão.

— Obrigado por nos trazer a salvo. – ele diz piscando duro de cansaço.

— Estamos quites. – nesse ponto jogo minha mochila sobre as costas.

Desembarcamos e lá estão os canadenses à minha espera. Despedimos-nos de Guigo e Michele e seguimos para o estacionamento. Coitadinho do Lúcifer, está praticamente sozinho no pátio com exceção de outros três carros.

Joseph troca algumas palavras com os gringos e quando faço menção em me dirigir ao Jeep, ele toma meu braço com suavidade. Os quatro turistas percebem o clima de imediato e pegam as chaves da minha mão, despedindo-se do médico gostoso que me causa loucas sensações vertiginosas. Quando estamos a sós Joseph ensaia o que dizer, mas parece desistir. Para tirá-lo dessa situação incômoda, levo as mãos aos bolsos do short e balanço o corpo para a frente e para trás, dizendo:

— Obrigada por ter me protegido essa noite.

— Obrigado por não ter explodido a lancha. – ele agradece, um tanto tímido, e esse embaraço é tão sexy!

Já dando por encerrada a despedida, eis que sua mão grande surge em cena, ajeitando alguns fios rebeldes atrás da minha orelha. Estremeço e suspendo a respiração, na expectativa. Ele volta a me encarar daquele jeito, a me cercar por todos os lados. Dou um passo à frente hipnotizada. Noto que está ansioso, levemente ofegante, totalmente preso a esse momento só nosso. Mas então, para minha total decepção ele baixa os olhos e parece retomar o controle sobre si.

— Tenha um bom dia, Demetria.

Xingo mentalmente, mas retribuo com um sorriso desapontado:

— Você também, Joseph.

                                             ≈≈≈

O dia transcorreu tranquilo e após o tour pela cidade histórica, na companhia dos gringos, voltei para a pousada doida por um banho e um livro. Mas quem disse que consigo me concentrar nessas letrinhas? Estou inquieta e uma ansiedade maluca consome minhas entranhas. Parece algo vivo, que se remexe angustiado dentro do meu estômago. Deixo o romance de lado e saio para a varanda da casa do meu velho. Já é noite e não há nem sinal da lua. Pelos raios que riscam o céu tem mais chuva chegando por aí.
Estou com energia de sobra e preciso gastá-la em algum lugar. Talvez uns socos, chutes, uma corridinha pela manhã. Mas então, uma brilhante ideia pisca em meu cérebro fervilhante. Sei exatamente o que fazer para sair dessa vibe.

Amanhã cedo, vou surfar.
                                             ≈≈≈

O dia amanhece cinzento. Está mais frio que de costume, portanto, visto um macacão de neoprene – velho, mas que ainda serve – por cima do biquíni. Nada me fará desistir de uma ida à praia para gastar essa energia que se concentra no meu plexo solar.

Lúcifer demora a pegar. Na terceira partida, finalmente o motor colabora. Tomo a estrada vicinal em direção a Praia do Cepilho, em Trindade. Ligo o rádio e busco a faixa preferida pelos surfistas da região. De acordo com o radialista, as ondas não estão das maiores, mas dá para brincar. São seis da manhã, um excelente horário para a prática do surf. Desde pequena pego ondas, mas estou fora de forma. Nada que alguns caldos não resolvam, aliás, meu “bronzeado escritório” já deu uma boa melhorada.
Estaciono Lúcifer e dou uma sacada na maré. O vento está ótimo e as ondas bem formadas. Inspiro aquela brisa úmida e me sinto em paz, como se o nó ansioso em meu estômago começasse a se dissolver.
Com a prancha debaixo do braço e a mochila às costas, afundo os pés na areia. Meus cabelos dourados esvoaçam, revoltos. Apesar do dia estar nublado, ajeito os óculos de sol sobre os olhos, protegendo-os do vento arenoso que se levanta do chão. Finco a prancha na areia e prendo as madeixas num rabo de cavalo improvisado. Jogo a mochila no chão e prendo o velcro em torno do calcanhar. Quando ergo o tronco para escolher um bom lugar para surfar, congelo no lugar, atônita.
O destino deve estar de sacanagem comigo, na maior zoação. Meus olhos vasculham os caracóis da cor do sol, descendo por aquelas costas esculpidas por Deus, em toda sua glória e inspiração. Respiro. Agora percorro aquelas nádegas firmes, envoltas por um tecido de neoprene. Detenho-me ali por mais tempo do que deveria. E então, baixo o olhar para aquelas pernas bem torneadas, com pelos dourados em toda a sua extensão.

O que ele está fazendo aqui a essa hora da matina?

Num contato telepático surpreendente, Joseph gira a cabeça para trás e seu olhar recai justamente sobre mim. Fico um tanto admirada com essa conexão, como se de alguma forma ele me sentisse por perto. É realmente assustador. Seu semblante sustenta a mesma perplexidade que o meu. Nós sempre surfamos juntos, mas pensei que os tempos de vida mansa haviam terminado. Pelo visto, me enganei.

O que fazer nessa situação?

Não há para onde correr, já que Joseph e sua prancha se aproximam a passos largos. O vento acaricia seus cabelos e, por um segundo, queria colocar meus dedos ali, como fazia quando ele deitava a cabeça em meu colo nos fins de tarde. Cara, o que eu tinha na cachola para estragar algo assim?

— Pensei que não surfasse mais. – ele começa.

— Faz algum tempo, mas é como andar de bike. – afirmo.

— Hoje o mar está agitado. Acha uma boa ideia?

— Quanto mais apavorante melhor. – digo decidida.

Uma sombra obscurece seus olhos esverdeados. Ele sustenta a face da apreensão. Sempre fui maluca, qual a novidade?

— Você quem sabe. – Joseph cerra as pálpebras e sacode os cachos. – Não se arrisque desnecessariamente.

— Está com medo por mim? – questiono, descrente.

— Só estou pedindo que tenha cuidado, Demetria. – dito isso, ele me dá as costas e segue em direção ao mar.

Os surfistas mais doidos estão na ponta da praia, onde as ondas são maiores e bem perigosas. Contento-me com um pouco mais de segurança e entro na água gelada. Dou braçadas longas, passando a arrebentação com mais dificuldades do que pressupunha. O vento sopra feroz e uma garoa fina começa a cair. Não vou desistir antes de surfar pelo menos duas ondas.

Encontro um bom lugar e aguardo. Joseph está a poucos metros de distância e parece pensativo. Deixa passar uma boa oportunidade e eu nem cogitei a onda, já que ele chegou primeiro.Vem uma excelente formação por aí. A onda é um tanto disforme, mas está bacana. Dou uma olhada para Joe e como ele não está remando, irei eu. Ah, que sensação incrível! Não foi uma onda alta, mas deu para executar algumas manobras básicas. Já estou nadando de volta e passo pela arrebentação mais uma vez.

Através de mímica, pergunto a Joseph o porquê de não ter pego a onda. Ele dá de ombros e volta para seus pensamentos. Não vou ficar aqui especulando seus motivos, só quero curtir e relaxar, nada mais. A chuva aperta e o vento aumenta a velocidade. As águas se revoltam de imediato, como se respondessem a um comando divino. Uma onda começa a se formar ao longe e parece ser perfeita. Joseph não se move. Nesse caso, a onda é minha. Dou braçadas vigorosas e quando olho para trás, o paredão de água é gigantesco. Penso em desistir, mas não o faço.

Estou na crista da onda.

Deslizo até a base, cortando a muralha de água com a mão esquerda. Que tremenda sorte, que onda animal! Ah Deus, valeu mesmo, vai rolar um tubo! Uhuuuuuuuuuu.

Estou dentro do tubo e me sinto poderosa, como se nada fosse impossível. Essa mistura de medo e aventura é indescritível. A adrenalina corre rápido por minhas veias e me sinto em êxtase. Mas, como eu disse, não estou em minha melhor forma e até os mais experientes surfistas cometem erros. E eu erro feio. Sou abocanhada por aquele paredão, perdendo a noção. Não sei mais onde está o céu ou a terra. Engulo muita água e a escuridão é total. Sinto a corda da prancha puxando o meu tornozelo e começo a brigar com o mar. Preciso emergir, preciso de ar! Sinto uma corrente gélida e peço aos céus que não tenha sido tragada por ela. Quando noto que o velcro da corda que me prendia a prancha se solta, entro em pânico. Outro grande erro. Se eu não subir nos próximos segundos, adeus mundo cruel. 
Eu não subo e acabo de perder a consciência.

Capítulo 20 (MARATONA 4/5)


Apenas de biquíni e descalça, caminho sobre o gelo sendo açoitada por uma nevasca cruel. Sinto arrepios e meus ossos parecem feitos de gelo. Mas então para meu total assombro eis que surge um urso polar nessa cena. Ok, se há um urso estou no Pólo Norte. E se estou no Pólo Norte de biquíni, é óbvio que estou sonhando. O urso é imenso e aqueles pelos parecem ser macios. E quentes. Domino meu ímpeto em sair correndo e gritando, aguardando seu próximo passo. Acho que o urso quer avançar sobre mim e me devorar.

Ele se ergue sobre as patas traseiras e acabo de dar dois passos para trás. Aqueles olhos grandes e esverdeados – ursos têm olhos verdes? – se fixam nos meus e aparentemente não pretende fazer mal algum. Ele solta um rugido alto, rouco e extremamente selvagem. Não estou temerosa, pelo contrário. Aproximo-me lentamente e minha mão direita se eleva, tocando aqueles pelos em brasa. As patas dianteiras me agarram num abraço apertado e me sinto asfixiar. O calor daquele animal me transmite segurança e agora estou em chamas. Mas então, sinto lábios em minha testa e acho que o urso acaba de me beijar a fronte.

Lábios? Beijo de um urso polar?

Abro os olhos e me sobressalto, totalmente surtada. Vasculho ao meu redor buscando entender onde estou. Não vejo os turistas em lugar algum, mas Joseph está ali me encarando com aqueles olhos verdes profundos e um tanto avermelhados.

— Onde eles estão? – ainda penso se o beijo na testa foi realmente desferido por um urso, mas enfim...

— Já foram para o restaurante. – ele revela e desvio meu olhar do seu peitoral despido.

— Por que não me acordou? – interpelo.

— Não tive coragem.

Giro a cabeça e meu pescoço faz cléck. Levo a mão à jugular e solto um palavrão. Torcicolo é a última coisa de que preciso hoje.

— Droga. – resmungo. – Devo ter ficado na mesma posição a noite toda.

— Realmente, você não se mexeu nem um milímetro. – ele ergue o tronco e alonga os braços no alto da cabeça. Isso é jogo sujo.

— Como sabe disso? – questiono, olhando para a janela. Não ouço barulho de chuva, mas também não vejo traços do sol.

— Não preguei os olhos.

— Por que não? – uno as sobrancelhas, curiosa.

— Estávamos com desconhecidos, preferi não dormir.

— Para proteger a mim ou a você? – tombo a cabeça sobre o ombro e a dor muscular deixa meus olhos marejados.

— Não acho que eles sejam gays… – e a frase fica solta no ar. – Deixe-me dar uma olhada nisso aí.

E lá vem ele com aquelas mãos grandes e quentes. Tico e Teco ainda não despertaram, portanto preciso de algum tempo para entender aquela deixa. Ah, mas como sou idiota! Ele não dormiu para me proteger de possíveis gatunos.

Hum, isso começa a ficar interessante.

Joseph segura meu ombro e deita minha cabeça na lateral. Dói um bocado quando ele alonga. Em outras épocas teria xingado todos os seus antepassados e as gerações futuras. Por incrível que pareça, estou sob controle.

— Tome um relaxante muscular. – ele aconselha. – Tem uma caixa na minha maleta.

— Certo. – meus olhos se atiram sobre ele como dois leões famintos. Joe me devolve um olhar ávido e a conexão entre nós está feita.

Existem momentos na vida em que o mundo fica em suspenso e o tempo-espaço desaparece. É como se fossemos transportados para outra dimensão, um lugar onde não há medo ou dúvidas. Acabo de entrar por esse portal do além e não quero, em nenhuma hipótese, sair do transe. Mas Joseph deve ter caído em si e baixa o olhar, rompendo o vínculo. Um sentimento horrível me invade e tenho vontade de chorar. Não o faço. Levanto-me num salto e, um tanto dolorida, calço meus chinelos, pego a mochila e sem dizer palavra, me mando o mais rápido possível daquele quarto.
                                               ≈≈≈

Passei um rádio para a pousada assim que coloquei os pés no restaurante e tomei o tal relaxante muscular. Apesar de sonolento, meu avô pegou no tranco e solicitou que eu pagasse pela estadia e as refeições. Mercedes não queria aceitar de jeito nenhum, mas sei ser convincente, afinal, vendo até merda caso haja necessidade. Bem, se eu puxar pela memória as inúmeras campanhas publicitárias que criei, comprovo que já vendi coisas piores do que merda.

Joseph boceja a cada cinco segundos. Seus olhos estão inchados, avermelhados, pequeninos. Ele não está bem para conduzir nem a si mesmo, é capaz de dormir ao volante no trajeto.

— Acho que o Joseph não está em condições de navegar. – quem fala o óbvio é Guigo. – Ainda tem habilitação, Demetria?

— Tenho. Mas e os gringos?

— Deixe comigo, arranho bem no inglês.

Com essa afirmação, aproximo-me de Joseph na certeza de que ele negará auxílio. Pigarreio e ele me encara com as pálpebras pesadas.

— Meu arrais amador está em dia Joe. Qual o tamanho do barco?

— É uma lancha de 18 pés. – ele elucida, não sem antes bocejar na minha cara. – Vai mesmo fazer o que estou pensando?

— Está nesse estado por culpa minha, então, me dê as chaves. – estendo a mão e Joseph checa os bolsos, estendendo o molho a seguir sem qualquer discussão.
                                                    ≈≈≈

A lancha é uma graça, com o logotipo do hospital no casco. O cockpit é pequeno, mas já pilotei embarcações menores do que essa. Procuro no GPS a localização anterior e traço a rota para a Marina 188.

Joseph está jogado no sofá de dois lugares, com as pernas para fora. Leva o antebraço na altura dos olhos e antes mesmo que eu tente engatar uma conversa, ele já está dormindo.

A volta para Paraty é tranquila, apesar do mar agitado e das nuvens acinzentadas que recobrem o céu. Lanço olhares para ele de tempos em tempos e meu coração se espreme dentro do peito.

Começo a conjecturar com meus botões.

Minha paixão por Joseph não tem data. Apesar do cara não fazer o meu tipo – pelo menos não fazia até ficar gostoso ao extremo – desde criança, tinha uma convicção absoluta de que nos casaríamos e ele seria o meu príncipe encantado. Enquanto as meninas surtavam por ídolos das novelas, da música ou da revista Capricho, eu sabia que tinha o cara perfeito à minha mão. Mas como nem tudo são flores – ainda bem, já que sou alérgica – , quando minha mãe me deixou rumo à iluminação espiritual, algo mudou dentro de mim e todas as certezas se esvaíram, como água escoando pelo ralo. Tive altos momentos depressivos e porque não dizer, depreciativos. Meu ego, vestido de ninja, dizia que eu não merecia ser amada, afinal, nem minha mãe havia me suportado. Eu sei, uma tremenda paranoia dramática! Mas era assim que eu me sentia na época e vou além: ainda me sinto assim nos dias de hoje.

Quando Joseph chegou com aquela aliança e um pedido de namoro, achei que não era merecedora daquele amor. O momento trash com Guilherme foi apenas para comprovar isso a mim mesma. Odeio fazer autoanálise, mas nesse instante me sinto curada, como se tivesse descoberto a real causa de uma doença terminal. Tenho que parar de culpar minha mãe por meus infortúnios e começar a assumir a minha vida de uma vez por todas
.



Capítulo 19 (MARATONA 3/5)


Engulo o ar com dificuldades. Acho que estou tendo uma parada cardíaca. Meu corpo estremece e sinto como se a pressão tivesse caído, juntamente com a temperatura. Joseph está estonteante, vestido todo de branco e sua camiseta, agora transparente, cola-se ao tórax de maneira inoportuna. Joga os cabelos úmidos de lado e estou quase desfalecendo com o gesto altamente sedutor.

Ai, droga, estou arfando.

Nossos olhares se cruzam em meio a nuvens elétricas. Seu semblante espantado denota que também não imaginava me encontrar por aqui, ilhada. Relâmpagos iluminam a escuridão do início da noite. O gerador está funcionando ruidosamente e só por esse motivo temos alguma claridade por aqui. Joe e Guigo iniciam uma conversa ao longe. Assim como nós, está óbvio que ele também foi pego desprevenido e está preso. Uma curiosidade começa a latejar por mais detalhes, mas me seguro no lugar.

— Arrumaremos um lugar para passarem essa noite. – a mãe do Guigo inicia, entrando no meu campo de visão. – Temos uma casa fechada, ao lado da nossa. É pequena, o gerador está quebrado, mas é melhor do que nada. Tem uma suíte grande e uma cozinha mínima, mas colchões não faltam.

Dou uma boa olhada para a tempestade que despenca do lado de fora do restaurante. Realmente não há outra saída, teremos que ficar por aqui até amanhã.

— Obrigada, Mercedes. Pelo visto, não é seguro ficarmos na lancha. – suspiro vagarosamente. – E não se preocupe com mais nada, nós nos viramos.

— Vou preparar algo para comermos e então subimos para dar uma ajeitada nas coisas. Devo ter velas em algum lugar por aqui.

Sigo até a cozinha e ajudo com o jantar. Vez ou outra dou uma bisbilhotada no salão, apenas para confirmar que Joseph ainda está lá. Numa dessas olhadelas, flagro-o me encarando. Ele desvia rapidamente o olhar e acabo de sorrir, satisfeita.
                                             ≈≈≈

E a chuva não dá trégua.

O jantar foi servido e não troquei palavras com Joseph. Estava atarefada demais, indo e vindo da cozinha a todo o momento. Quando faço menção em lavar as louças e panelas, as canadenses não permitem, assumindo os afazeres. Agradeço e tiro o avental, pendurando-o próximo ao fogão. Os caras se juntaram ao redor de uma mesa e o poker está rolando solto, com direito a apostas e tudo o mais. Passo por eles a caminho da varanda, lançando um olhar furtivo para Joseph.

O aroma da chuva é delicioso. Apoio a lateral do corpo numa grossa pilastra de madeira e assisto ao espetáculo elétrico. Adoro tempestades como essa, são tão parecidas comigo… imprevisíveis.

Sinto uma aproximação às costas. Pelo aroma de orvalho que encanta meus sentidos, já sei de quem se trata. Não me viro para fitá-lo. Continuo ali, estática, absorvendo os ares noturnos e aquela entorpecente brisa marítima. Joseph escora as mãos no parapeito de madeira ao meu lado. Meu coração se descontrola, assim como a respiração. Não quero que ele perceba o quanto mexe comigo e por isso, resolvo começar a falar para ocupar a mente:

— O que veio fazer na ilha? – giro o pescoço e preciso olhar para cima, a fim de encará-lo nos olhos.

— Lembra-se do garoto que deu entrada no hospital? Aquele com fratura exposta? – meneio a cabeça, afirmativamente. – Pois então, hoje é meu dia de folga e vim para uma visita domiciliar. Seu pai comprou um barco para consultas desse tipo, totalmente gratuitas. Apesar de sermos um hospital particular, ele não abre mão de atender parte da população carente. Esse é o diferencial dele, seu velho é um homem no qual vale a pena se espelhar.

— Uau. – o que dizer depois dessa explanação romântica e um tanto utópica? Meu pai sempre fez o tipo super herói dos fracos e oprimidos, mas não sabia até que ponto isso era verdade. Um tanto orgulhosa do meu velho, sorrio num júbilo incontido. – Nenhuma boa ação fica impune. – acabo de citar Clara Boothe Luce, apontando para o céu tempestuoso.

— Exatamente. – ele me lança um meio sorriso. – Agora estou preso aqui após minha boa ação do dia.

Ficamos calados por tempo indeterminado. Volto a fitar o céu, com seu espetáculo pirotécnico a lançar raios prateados pela escuridão. Penso em algo para dizer e reinicio a conversa:

— Encontrei com o Guilherme.

— Ele me disse. – Joseph revela.

— Ele disse? – fico surpresa. – Pensei que a amizade tivesse terminado.

— Por algum tempo apenas. Mas acabamos nos entendendo, as mágoas foram esquecidas. De nada adianta ficar remoendo o passado. – sinto uma alfinetada nessa afirmativa.

— Legal pensar assim. – traço círculos invisíveis no chão, com a ponta do meu chinelo.

— Ele é um cara legal e ainda está solteiro.

O que Joseph está tentando dizer com isso? Perplexa e ofendida, lanço um olhar matador em sua direção. Ele recua quando nota que estou prestes a explodir.

— O que está fazendo? Tipo, dando uma de cupido, é isso? Eu e o Guilherme não temos nada a ver, aliás, nunca tivemos. O que aconteceu há dez anos não foi nada além de um lapso, um grande erro. Então por favor, nem pense em algo assim.

— Foi um erro? – ele questiona, com uma carinha de cão sem dono que me derrete por dentro. Mas continuo durona, cruzando os braços sobre o peito.

— Sim, um grande e gravíssimo erro. – concluo numa certeza que reverbera pela varanda quando o silêncio recai novamente.
                                                   ≈≈≈

Munidos de guarda-chuvas, subimos por degraus cimentados até o casebre mais a frente. Dormiremos os seis no único quarto disponível. O fato é estranho por si só. Não conheço esses canadenses e estou pouco a vontade com a situação. Para minha sorte não estou sozinha.

Jogamos vários colchonetes sobre o chão de lajotas vermelhas. Os gringos não estão nem aí com as péssimas condições e acabam caindo em qualquer lugar adormecendo quase que de imediato.

Pego minha mochila e vou para o único banheiro do casebre. Tomo uma ducha gelada, já que não temos eletricidade. Visto roupas limpas e por sorte lembrei de pegar minha necessaire com escova de dentes, pasta e fio dental. Vasculho a procura do pente e encontro junto com o meu desodorante.

Infelizmente, não há uma sala e a cozinha é pequena demais para um colchão. Nesse caso, desisto de encontrar qualquer saída para a situação na qual estou metida. Quando chego ao quarto noto que o único lugar vago é ao lado do Joseph. Ele ainda está acordado com o peitoral descoberto e as mãos atrás da cabeça. Fita o teto como se estivesse enxergando através da estrutura. Há uma vela acesa. Ela tremula com o ar úmido que entra pelas frestas da janela. Estou congelada no lugar, sem saber o que fazer. Se ele percebe minha intranquilidade não diz absolutamente nada.

Os canadenses já estão num sono profundo quando deixo minha mochila sobre uma cadeira. Tiro os chinelos e caminho sem fazer barulho até o colchão recostado na parede lateral.

Só então Joseph se dá conta da minha presença.

— Quando acordei essa manhã nunca poderia imaginar que o dia terminaria assim. – ele murmura.

— Sei o que quer dizer. – sussurro em resposta.

— A água do chuveiro está muito fria?

— Glacial.

— Ótimo, estou precisando. – ele se levanta em direção ao banheiro, lançando um último olhar na minha direção antes de sumir através do umbral.
                                            ≈≈≈

Os únicos dois lençóis disponíveis, cedemos para as gringas. Eu disse que o frio é psicológico e elas acabaram aceitando de bom grado. Psicológico uma ova! Estou tremendo por aqui e quando Joseph volta ao quarto me encolho no cantinho fechando bem os olhos. Estou vestindo uma regata branca e um short jeans por cima do biquíni. Sinto os pelos do corpo arrepiados. Não há cortinas na janela e a brisa gélida entra com tudo bem às minhas costas. Essa será uma noite longa e difícil, pelo visto. Escuto quando Joe apaga a chama da vela com um sopro. Ouço quando deita ao meu lado e se espalha. Nossos colchonetes estão separados por uma distância de apenas alguns centímetros.

— Sei que está fingindo.

— Não estou, apenas quero dormir. – respondo acima do retumbar de um trovão.

— Está com frio? – ele sussurra a pergunta.

— O que acha? – rebato, levemente irritada.

O barulho da chuva sobre o telhado é ensurdecedor. É como se milhões de pregos estivessem martelando na minha cabeça. E tem esse vento gelado que corta minhas costas me causando calafrios.
Sobressalto-me quando sinto seu braço se esticar sob meu pescoço. Os colchões agora estão unidos e quando dou por mim minha cabeça está aninhada em seu peito cheio de pelos e músculos bem trabalhados.

Agora ferrou de vez.

Minha mão esquerda resolve ter vida própria e contrariando todos os meus comandos mentais, se aconchega sobre aquele tórax de pele macia e cheirosa. Seguro a respiração por alguns segundos. Estou dura como uma pedra. Mas então ele quebra o gelo quando acaricia meus cabelos como fazia quando dormíamos juntos. Sim, dormimos várias vezes juntos. Como se eu fosse uma mulher-bala, sinto que acabo de ser atirada em direção ao passado. Flashes de memórias me vêm à mente num turbilhão desenfreado. Tenho que me conter, eu preciso ser forte!

— Ainda está com frio? – ele sussurra, ao pé do meu ouvido. Seu hálito quente deixa rastros em meu pescoço e acho que acabo de ofegar. Eu vou perder o controle estou sentindo.

— Não mais. – respondo e me seguro para não fazer uma bobagem.

— Durma bem, Demi.

— Você também. – balbucio e cerro bem as pálpebras, pedindo a Deus que eu apague nos próximos minutos.

Capítulo 18 (MARATONA 2/5)



Alguns dias se passaram. Meu pai conversa comigo apenas o necessário e finjo não estar ressentida. Sei que mereci ser demitida do meu emprego temporário, afinal não fiz jus à confiança que ele depositou em mim.

Dois casais de turistas canadenses chegaram hoje à pousada e estão apenas de passagem. Nesses dois dias de visita à Paraty, solicitaram ao meu avô uma intérprete, alguém que conheça a cidade. Óbvio que fui cogitada para servir de babá e aceitei prontamente. Meu inglês é aceitável e conheço essas paragens como poucos.

Faremos um tour pela cidade histórica amanhã e, no dia de hoje, sairemos num passeio de lancha pelas ilhas mais famosas. Os gringos curtiram o meu roteiro, principalmente o almoço num restaurante típico situado numa aldeia de pescadores longe o bastante da costa.

Estou com a mochila a tiracolo: toalha de praia, protetor solar fator 60, um borrifador de água termal para o rosto, barrinhas de cereal, um cantil com água, spray para manter os insetos bem longe, uma troca de roupas e outros apetrechos de primeira necessidade.

— Soube que uma tempestade se aproxima. Fique de olho no horário. – meu avô adverte. – De acordo com a meteorologia, deve chegar a Paraty no fim da tarde.

— Certo. Mas fique tranquilo estarei com o Guigo. Se o tempo fechar ele saberá o que fazer.

Guigo é um amigo de longa data dos meus avós. Possui uma lancha charmosa para passeios com turistas endinheirados. Seu pai é dono do restaurante no qual faremos a parada para o almoço. Aliás, meu avô passou um rádio para lá, fazendo o pedido de antemão. A truta demora algumas horas para atingir o ponto certo e quando chegarmos, estará pronta para ser servida.

O dia está lindo e não acho que cairá tempestade alguma. A lancha Oceanic de 32 pés com popa longa, reluz de tão limpa. Está repleta de engradados de cerveja, água e vejo também alguns destilados no cockpit, que aliás, está todo reformado com um novo sofá florido de quatro lugares.

Guigo nos apresenta as duas cabines. A principal possui uma cama de casal e um guarda-roupas embutido. A outra mantém dois beliches e mais nada. A cozinha é bem equipada, mas tão pequena que só cabe uma pessoa por vez. É lá que encontro sua esposa Michele preparando camarões graúdos empanados. O aroma me faz salivar.

Meu inglês colocado em prática até que não soa ruim. Entendo perfeitamente o que dizem e não preciso me esforçar muito nas respostas. Engatamos uma conversa inteligente sobre as desigualdades sociais no Brasil. Esse é um assunto controverso, que não se esgotará tão cedo. Sendo assim, abro uma garrafa d’água – resolvi parar de beber para sempre – e me sento na proa, debatendo as possíveis causas e as soluções para esse país que na minha opinião ainda é o melhor lugar do mundo para se viver.
                                               ≈≈≈

Chegamos a Ilha Grande após um trajeto de quase uma hora e meia. Esse é um dos pontos altos do passeio, afinal, os gringos enlouquecem com a natureza e as histórias desse lugar que já foi refúgio de piratas, hospital de quarentena e também abrigou um presídio de segurança máxima, assim como Alcatraz. Se não me engano, a colônia penal foi desativada em meados de 1994 e então, aberta ao público para visitação.

Reserva da Biosfera da Unesco desde 1992, essa ilha é rodeada por cem praias de areias branquinhas e águas verdes translúcidas, recoberta por quilômetros de Mata Atlântica protegida.

Não há estradas por aqui, portanto, os carros são proibidos. Esse é um lugar daqueles bucólicos, onde as pessoas nem possuem relógios ou celulares. É como uma viagem no tempo, algo que eu adoraria fazer para quem sabe, consertar as milhões de burradas ao longo da vida.

Após a visitação, partimos para o almoço numa pequena aldeia de pescadores a poucas milhas náuticas daqui. O sol está a pino e meu protetor solar não dá conta do recado. Coloco um chapéu sobre a cabeça e fecho os olhos, deixando-me devanear através do forte vento ocasionado pela velocidade da lancha.



O almoço estava divino, como sempre. Os gringos estão embasbacados com as inúmeras possibilidades nesse país gigantesco, rodeado de belezas naturais impossíveis de serem reais.
Os dois casais de canadenses devem ter a minha idade, talvez um pouco menos. São divertidos e as horas estão passando bem rápido, aliás, assusto-me quando Guigo diz que já são cinco da tarde.

Nesse momento, um raio rasga o céu em duas partes.

Nos entreolhamos, em dúvida. Temos uma hora e quarenta minutos de mar para chegarmos a salvo na costa. Guigo entra em contato com a Capitania dos Portos e somos pegos de surpresa quando dizem que o mais sensato é permanecermos na ilha até a tempestade passar.

Só me faltava essa.

Passo um rádio para a pousada e sou repreendida de imediato pelo meu avô. Ele brada do outro lado, dizendo que havia me avisado para ficar ligada no horário. Caramba, eu me distraí, só isso.

— Agora se vire e arrume um lugar para essa turma ficar. Converse com o pai do Guigo, deve haver alguma casa desabitada para passarem a noite. Câmbio.

— Vô, nem pensar em dormir aqui! Câmbio.

— Demetria, nem cogite a possibilidade de voltarem à noite. Se fizer isso darei umas boas palmadas nessa sua bunda. Câmbio final.

Merda!

Mas então, entre lamentações resignadas, eis que alguém entra no restaurante, completamente ensopado. A chuva cai aos montes do lado de fora e nem imagino o que ele esteja fazendo por essas bandas.

Capítulo 17 (MARATONA 1/5)


— Soube do seu papelão no hospital. Dê graças a Deus por eu estar fora da cidade ou você levaria uma bronca digna de um Óscar. – meu pai está furioso do outro lado da mesa de jantar. Meus avós estão calados, olhando para seus pratos.


— Desculpe, pai.

A fofoca corre solta em Paraty. Esse é o problema das cidades pequenas e foi um dos motivos pelos quais optei por me mudar. Nada passa despercebido, não há onde se esconder.

Meu pai tem razão, foi um papelão. Para quem gostaria de passar uma imagem profissional, de uma mulher bem resolvida, ferrei com tudo na primeira oportunidade.

O jantar transcorre sob um silêncio aterrador. Ajeito-me na poltrona, desconfortável com a situação. Pedi desculpas, mas não sei se surtiu algum efeito. Meu velho está muito puto e não ouso dizer mais nada para inflamá-lo. Mas então, ele deixa os talheres caírem ruidosamente sobre o prato e seu olhar me invade, como uma tsunami mortal.

— Tomei uma decisão, Demetria. A partir de amanhã, trabalhará com os seus avós aqui na pousada. Não quero mais os seus serviços, portanto, não dê as caras lá no hospital.

— Pai! – levanto-me, boquiaberta. Parto em minha defesa, mas ele não quer escutar meus argumentos.

— Já decidi. No hospital você não trabalha mais.

— Eu estou com o projeto pronto, fiz um ótimo trabalho! Por favor, pai, me dê mais uma chance.

— Não! Estou cansado, Demetria. Juro por Deus, pensei que sua estada em São Paulo tivesse mudado essa sua cabeça oca. Você me decepcionou e muito. – ele se levanta e caminha na minha direção, estendendo-me um envelope com o logotipo do hospital. – Eis aqui o resultado do seu exame de sangue. Com o nível de álcool encontrado no seu sangue, fico surpreso por você não ter entrado em coma. Pego o envelope com a mão trêmula e meu pai sai da sala de jantar, deixando-me a sós com meus avós. Meu corpo cai pesado sobre a poltrona e meus olhos ficam marejados de imediato.

Eu o decepcionei, de novo.

— O que acha de darmos uma volta pela orla? – meu avô limpa os lábios e deposita o guardanapo de linho branco sobre a mesa.

— Não estou a fim de conversar, vô. – respondo, infeliz.

— Sem problemas. – ele arrasta a poltrona e se levanta. – Ainda assim, não gostaria de conduzir esse velho numa caminhada para digerir essa comida toda? Adoraria a companhia da minha neta.

Busco o olhar da vovó. Ela me lança um sorriso contido e balança a cabeça, pedindo que eu vá.

Suspiro alto e não tenho como recusar. Aceito, um tanto relutante, esse passeio à beira mar.
                                               ≈≈≈

Caminhamos a esmo, num silêncio reconfortante. Meu avô anda vagarosamente e eu tento acompanhar seus passos imprecisos. A noite já caiu faz algum tempo e uma lua esplêndida nos banha com sua luz dourada e um tanto sentimental. Adoro as noites de lua cheia em Paraty, me lembram daquele luau, do beijo que saiu errado.

Vejo um cara correndo sem camisa em nossa direção. É um moreno alto, bonitão, com ares de atleta. Reconheço-o de algum lugar do meu passado. Quando se aproxima, noto que também me reconhece. Ele diminui o passo e sua face estampa uma real surpresa.

— Demetria! Que bons ventos a trazem?

— Oi, Guilherme. Estou de volta. – aliso os cabelos dourados para trás das orelhas.

— Para ficar?

— É bem provável. – respondo, sem muita certeza na voz.

— Poxa, que notícia bacana. – ele mira meu avô e o cumprimenta. – Caramba, Demi, faz muito tempo, não?

— Uns dez anos, eu acho. – meu sorriso é forçado. – Ainda morando aqui?

— Acabei voltando quando herdei o bar do meu velho. Lembra do lugar? – confirmo com a cabeça. – Quando estiver de bobeira, dê uma passada por lá. Cerveja por conta da casa.

Meu estômago dá loopings afetados quando penso em álcool.

— Pode deixar, Gui.

— E cara, uau, você continua linda. – ele morde o lábio e me dá uma geral com os olhos. – Bom ver você, Demi. E boa noite seu João.

— Boa noite, Guilherme.

O saradão volta para sua corrida noturna e tenho a sensação de que agora que o silêncio foi quebrado, meu avô tomará as rédeas da situação. Dito e feito. Ele inicia um sermão daqueles, onde depois do tapa, assopra o local. Meu avô tem razão em cada palavra proferida. Escuto pacientemente seus conselhos e entramos num acordo. Provarei ao meu pai que cresci, que sou digna de sua confiança. Como farei isso? Rá, eu também adoraria saber.

Quanto ao Guilherme, não senti absolutamente nada ao vê-lo. O cara está o maior gato, como sempre foi. Mas não passa disso, nunca passou. Ainda não sei onde eu estava com a minha maldita cabeça.

Voltamos para a pousada e estou jogada na cama, colocando Nauane a par dos últimos acontecimentos tenebrosos. Sério, não sei como ela aguenta minhas lamúrias frequentes. Mas seja o que for, lá está ela, sempre pronta para me detonar e logo em seguida, aconselhar-me como só uma melhor amiga pode fazer.

SURPRESA!

Oie maninas como estamos na véspera do natal vou dar uma maratona de presente,beijos, esperem que gostem!
                                    Feliz natal!

Capítulo 16


— Qual o nome dele?

Joseph faz a pergunta enquanto gemo baixinho. Ele desliza a gaze suavemente sobre meus joelhos e o antisséptico geladinho causa um conforto imediato. A pergunta ecoa e meu cérebro faz a busca. Caramba, qual o nome daquele filho da mãe do meu ex-chefe e ex-namorado? Não consigo me recordar! Isso não é possível, estou com algum problema neurológico sério. Esforço-me a lembrar e entro em pânico com essa pane generalizada. Mas então, o nome daquele indivíduo me é sussurrado pelo meu ego agonizante: Roger.

— Por que acha que alguém é responsável por minha decisão de voltar para Paraty? – interpelo.

— Foi só uma coisa que me passou pela cabeça. Não acho que sua mudança tenha a ver com consciência pesada ou filantropia. – seus dedos acariciam meu joelho direito. Será que ele se deu conta disso? Não digo nada, adoro os choques elétricos que percorrem meu corpo nesse exato momento.

Olhos nos olhos. Ele aguarda que eu responda.

— Roger é o nome dele.

— Hum. – e então, ele percebe o que está fazendo e tira as mãos das minhas pernas apressadamente. – Deixe-me ver sua mão.

Meu punho cerrado se abre, com a palma voltada para cima. Joseph faz a mesma manobra, borrifando o antisséptico e limpando o local com a gaze. Solto outro gemido involuntário e ele me encara, inquisidor:

— Esse cara deve ter feito algo de muito grave.

— Talvez. – viro o rosto, desviando-me de seu olhar profundo. Poucos são os que conseguem ler a minha alma, meus pensamentos. Joseph definitivamente é um deles e não quero correr o risco. – Mas eu já me esqueci, fique tranquilo.

Ele fica pensativo por algum tempo. Não quero falar sobre meus flagelos com ele, aliás, deixei isso bem claro ontem. Mas então, o assunto muda drasticamente e ele inicia: — Quanto ao convite da Samantha… Não deixo que ele conclua a frase.

— Não há com o que se preocupar, não vou aparecer no seu casamento. Se é por esse motivo que está aqui me bajulando, pode ficar sossegado. – uma fúria insana se instala na boca do meu estômago.

— Não era bem isso o que eu iria dizer.

E o que era então? Ah, quer saber? Não estou a fim de descobrir.

— Por favor, posso ir agora? Tenho trabalho a fazer e já me sinto bem melhor.

— Espere o soro terminar. Depois disso, estará liberada. – ele faz menção em me dar as costas e sair, mas então, petrifica no lugar. Parece indeciso, como se precisasse dizer mais alguma coisa. – Por que não me contou sobre a universidade em São Paulo? Soube da sua mudança dias depois, quando fui até a pousada procurar por você.

— Foi me procurar? – ok, ele consegue cem por cento da minha atenção e boas doses de culpa reprimida resolvem esmagar meu peito.

Joe está de cabeça baixa e umedece os lábios, numa tensão que parece estar crescendo. Espero, ansiosa, que ele continue. Ajeito-me na maca para ouvir melhor.

— Achei que pudéssemos nos entender. – ele morde o lábio com uma sensualidade que me deixa sedenta de repente. – Como sempre, eu estava enganado.

— Pensei que não quisesse mais me ver depois do que fiz.

— Eu também pensei. – ele parece engolir em seco e seu semblante denota que está nervoso com o rumo dessa conversa. – Você deveria ter ao menos se despedido. Não fui qualquer um na sua vida, por mais que seus atos digam o contrário. – ele faz uma pausa e estou sem ar. – Sei que fui importante para você, por mais que negue isso.

Eu quero chorar. Cortar os pulsos. Me afogar numa privada malcheirosa. Meu cérebro formula milhões de respostas, mas nenhuma delas ganha voz. Joseph se antecipa antes que eu diga qualquer coisa.

— Eu realmente pensei que tivesse superado essa rejeição. – ele sorri laconicamente. – Quer saber? Esqueça essa nossa conversa, são águas passadas.

— Bem turvas. – murmuro.

— E tempestuosas. – ele completa.

— Doutor? – uma enfermeira aparece do nada. – Um garoto acaba de dar entrada na emergência. Fratura exposta após uma queda de bicicleta.

— Já estou a caminho. – ele responde e seu olhar se atira dentro do meu. Vejo angústia e outro sentimento que não identifico. – Assim que seu soro terminar, aperte esse botão e a enfermeira virá retirar, está bem?

— Hum, hum.

— Qualquer mal estar, peça para chamarem o Doutor Mazer. – ele já está de saída, quando eu digo:

— Me perdoe, Joe. Eu não sabia o que estava fazendo.

Joseph está parado à porta, com a respiração ofegante e os lábios entreabertos, em dúvida. O olhar está cravado no chão e ele parece pensar no que dizer a seguir. Não há nada a ser dito. Tanto que, sem me dirigir o olhar ou se despedir, sai apressado pelas portas vai e vem da sala de observação.


 

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Capítulo 15


E a noite que estava incrível culminou numa perfeita catástrofe novelesca. Enchi a cara, entornei o caneco, enxuguei como uma toalha e outros ditados bebuns. Espírito nem tentou me conter, ele sabia que de nada adiantaria. Deixou que eu me afundasse no álcool e foi um amigo bem prestativo. Disse palavras de consolo e me ajudou a xingar a vadia.

No retorno para a pousada, cambaleando por ruas estreitas, sendo amparada por Espírito, minha rasteira branca literalmente me passou uma rasteira daquelas. A ponta dourada fincou numa fenda do calçamento pé-de-moleque e fui de cara no chão. Por sorte, fiquei sóbria por tempo suficiente para ralar apenas os dois joelhos e uma das mãos, já que meu amigo segurava bem firme a outra. Ele não teve reação para nada, seu reflexo estava bem comprometido. É por essas e outras que vivo dizendo que vou parar de beber. Lembro que comecei a chorar e rir ao mesmo tempo, totalmente surtada. Espírito ajoelhou-se ao meu lado e me deu um caloroso abraço, tão necessário naquele instante.

— Por que estou me sentindo assim? – perguntei, num lufo alcoólico.

— Não sei, Demi. Acho que você não estava preparada para ver o Joseph com outra pessoa.

Ainda mais ela sendo quem é.

— Eu não estou me entendendo.

— Ninguém a entende. Mas olhe, eu estou aqui, sua família ama você e logo a Nauane chegará. Você nunca estará sozinha, eu prometo. – Espírito estava com a voz meio molenga, mas entendi suas palavras de conforto. – Venha, eu ajudo você.

E entre mortos e feridos, chegamos salvos à pousada.
                                            ≈≈≈

Essa ressaca vai me matar.

Tem um galo enorme crescendo na minha cabeça, meus joelhos ardem, a palma da minha mão direita está em chamas… o que mais pode acontecer? Desde que reencontrei Joseph, levei dois baita tombos. Por sorte, ele não viu o segundo acontecer.

Estou no hospital, trancada no meu escritório, montando a apresentação para a administração. Tenho boas ideias para a revitalização da marca e também algumas sugestões quanto aos materiais impressos e a papelaria básica. Mas essa dor de cabeça dos infernos não me deixa pensar com clareza. Checo a bolsa mais uma vez, irritada por não encontrar qualquer remédio que seja. Só então a ficha cai e dou com a testa no teclado do notebook. Como sou estúpida! Isso aqui é um hospital, não? Impossível não terem um analgésico, uma dipirona, ou quem sabe seria melhor um gardenal ou um diasepan bem de leve na veia. Vou enlouquecer com esse sambão dentro da cachola!

Afasto a cadeira e me levanto, sentindo um enjoo surgir lá dos recônditos do meu estômago revirado. Eu tinha mesmo que encher a cara daquele jeito? Quando vou aprender a me controlar?Destranco a porta e saio para o corredor, na esperança de cruzar com alguma enfermeira gente boa pelo caminho. É só um comprimido, nada demais. Vou me arrastando, tateando pelas paredes, a visão ficando turva e então… sei lá o que houve.
                                              ≈≈≈

Escuto palavras soltas no ar.

Tem algo gelado passeando pelo meu peito.

Agora acho que furaram o meu braço.

Meus olhos começam a se abrir, vagarosamente.

E então, a visão do Paraíso.

— Eu morri? – balbucio.

— Ainda não. – reconheço aquela voz, mas de onde mesmo?

É um anjo, só pode ser. Ele veio me buscar, envolto por uma aura prateada, uma luminosidade que me cega. Ah, como ele é lindo. Está tocando harpa? Hum, não se parece com um instrumento musical. Espere aí, é um estetoscópio! Droga, estou no hospital!
Ergo o tronco num sobressalto. Duas mãos grandes entram em cena, pedindo que eu me acalme e volte a deitar. Obedeço, mas não sem resistir um bocadinho.

— O que aconteceu? – apresso-me em questionar.

— Eu é que pergunto. Seu exame de sangue ainda não chegou, mas não precisa ser nenhum Espírito para adivinhar o resultado. Quanto você bebeu ontem e desde quando não se alimenta?

— Droga, Joseph, faça perguntas fáceis. – só então me dou conta do meu braço furado. – Que merda é essa que vocês injetaram aqui?

— Soro e um coquetel. Vai ajudar a curar essa ressaca.

— Quem aqui está de ressaca? – pergunto, indignada.

— Seu hálito a denuncia. – ouço o arranhar de um banco sendo arrastado. Joseph toma assento, fixando meu olhar. – Pensei que tivesse mudado, Demetria.

Não digo nada, fecho-me em copas. Aquela última frase doeu e não tenho defesas para tal afirmação. Joseph tem razão, eu continuo a mesma inconsequente de tempos atrás. Enquanto todos evoluíram, eu ainda sou aquela adolescente babaca que pensa erroneamente que a vida é um parque de diversões. Também acredito que sou a mulher maravilha e posso tudo, sem qualquer regra.

— Demi, não estou recriminando você. – ele toca meu pulso e eu estremeço. – Mas precisa crescer, já está mais do que na hora. – Joseph gira minha mão direita. – Onde conseguiu esse ferimento? E o dos joelhos?

— Foi um acidente idiota. – meu tom de defesa está no mode on.

— Eu cuido disso para você.

— Uma enfermeira pode fazer isso. – rebato.

— Ainda assim, eu farei.